O Leviatã e o Caos Primordial – mitologias do Crescente Fértil
Nas antigas mitologias do Crescente Fértil[1], um conceito recorrente é o do "Caos Primordial" — forças ou estados de desordem cósmica que precedem a criação ou desafiam a ordem estabelecida[2]. Esse conceito está presente em culturas que vão da Mesopotâmia ao Egito Antigo, sendo frequentemente personificado por criaturas monstruosas como Tiamat (na mitologia babilônica), Lotan (na mitologia ugarítica, com paralelos ao Leviatã bíblico[3]) e Apep (na mitologia egípcia).
Em muitas dessas tradições, o caos é simbolizado pelas “Águas Primordiais” — vastas e incontroláveis massas de água que refletiam a percepção antiga do mar como uma força perigosa e imprevisível. Nesse contexto, a cosmogonia[4] dessas culturas frequentemente inclui uma batalha cósmica, em que deuses como Marduk, Baal ou Rá enfrentam e vencem essas entidades caóticas para estabelecer a ordem[5].
O "Caos Primordial", portanto, ocupa um papel central nessas cosmogonias, representando uma ameaça real à estabilidade divina, combatida por divindades heroicas em uma constante reafirmação da ordem.
No entanto, a tradição bíblica apresenta uma visão profundamente distinta. Embora o Leviatã, por exemplo, compartilhe elementos simbólicos com criaturas caóticas dessas mitologias, ele não representa uma ameaça à soberania divina. Pelo contrário, nas Escrituras, o Leviatã é descrito como uma criatura criada por Deus, subordinada ao Seu poder (cf. Jó 41; Sl 104:26). Em Salmos 74:14, Deus é retratado esmagando o Leviatã e repartindo sua carne aos habitantes do deserto, o que simboliza domínio absoluto — e até certo humor — sobre aquilo que outras culturas consideravam ameaçador.
Diferente das mitologias do Crescente Fértil, onde os deuses enfrentam forças caóticas em lutas quase equilibradas, a Bíblia apresenta Deus como o Criador Todo-Poderoso[6], soberano sobre todas as coisas[7], sem rivais à altura[8]. O Leviatã não é um demônio ou uma força independente, mas uma criatura (mitológica ou não) sujeita à vontade de Deus — um símbolo que reforça Sua autoridade absoluta, inclusive sobre aquilo que nos parece caótico ou indomável.
Assim, enquanto nas mitologias antigas o caos é um oponente real a ser vencido, na cosmovisão bíblica ele é apenas mais um instrumento nas mãos do Deus Único, que reina soberanamente sobre toda a criação.
O Deus bíblico é sem igual, sem rival, único em essência, poder e glória, e no fim dos tempos, Ele será reconhecido como o único digno de adoração.
[1] O Crescente Fértil é uma área que abrange as antigas regiões da Mesopotâmia, Canaã e o Egito.
[2] WALTON, John H. O Pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 183-185.
[3] A palavra hebraica לִוְיָתָן (transliterada como liwyatān) aparece em diversos textos do Antigo Testamento da Bíblia Hebraica, invariavelmente associada a uma criatura marinha de caráter mítico. Suas ocorrências principais encontram-se em Jó 3:8 e 41:1, Salmos 74:14 e 104:26 e Isaías 27:1.
Nas traduções bíblicas para o português, o termo é consistentemente transliterado como "Leviatã", mantendo assim sua conotação simbólica e sobrenatural. Contudo, em algumas passagens, ele é adaptado para termos como "monstro marinho", "serpente", "dragão" ou, mais raramente, "crocodilo".
Esta última tradução, no entanto, é amplamente rejeitada pelos estudiosos bíblicos, especialmente devido à incoerência no texto de Salmos 74:14, onde se afirma que Deus despedaçou “as cabeças do Leviatã” (ARA). A menção no plural — “cabeças” — torna a associação com o crocodilo, animal de uma única cabeça, linguisticamente insustentável, reforçando a natureza mitológica da criatura descrita, aproximando-a de Lotan, um monstro marinho que teria sido derrotado por Baal.
Carlos Osvaldo (2014, p. 436) argumenta que as traduções bíblicas modernas são levadas por uma postura biológica evolucionista que reduz essa criatura a um animal existente na nossa época.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. Volume 6 (A–L). 1ª Ed. São Paulo/SP: Editora Hagnos, 2001, pg. 4636.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2ª ed., 2014, p. 436.
The Word (versão 5.0.0.1450) [programas de computador]. Atenas, Grécia: Costas Stergiou.
[4] Cosmogonia é um relato, normalmente mítico, que explica a criação e a ordem do universo e, ao mesmo tempo, o surgimento dos seres humanos. <Cosmogonia - Conceito e o que é>. Acesso em: 03 mai. 2025
[5] WALTON, op. cit., p. 185.
[6] Gênesis 1:1; Jó 42:2; Salmos 33:6; Isaías 40:28; Jeremias 32:17; Colossenses 1:16,17; Apocalipse 4:11; et al.
[7] 1 Crônicas 29:11-12; Salmos 115:3; Provérbios 21:1; Isaías 46:9-10; Daniel 4:35; Romanos 9:20-21; Efésios 1:11; Apocalipse 19:6; et al.
[8] Êxodo 15:11; Deuteronômio 4:35, 39; 1 Samuel 2:2; Salmos 86:8-10; Isaías 45:5-6, 46:9; Jeremias 10:6-7, 10; Apocalipse 15:3-4; et al.